Livros desenhados
Nos acostumamos de tal modo com a reprodutibilidade técnica e cada vez mais digital, rápida e eficaz que esquecemos o trabalho humano que está por trás das técnicas..
Não sei quantos livros escrevi, tenho preguiça de contar e um pouco de vergonha, não sei por quê. Há os ensaios, os romances, as coletâneas de assuntos acadêmicos em parceria com outros professores, há os diálogos que são trocas com pessoas como Thereza Rocha, Nadja Hermann ou Jean Wyllys. Mais fácil contar quantos livros eu ilustrei, os da Bete Tiburi, minha irmã, o da Penélope Martins, minha amiga. Mas isso também não é, na verdade, muito fácil, porque há desenhos em outros livros meus, que podem ser classificados no vasto mundo da ilustração.
Dentre os livros todos, há um que não foi publicado e talvez nunca venha a ser, à medida que reproduzi-lo não me parece viável por problemas técnicos. Nos acostumamos com a reprodutibilidade de tudo, mas sabemos que as obras de arte não se reproduzem como o original. O original é um fantasma. Uma imago original, obsedante.
O livro sobre o qual estou falando se chama “Pele de Porco”. Ele tem cerca de 150 páginas escritas à mão e desenhadas com nanquim. Comecei a escrevê-lo em 2017. Às vezes as pessoas olham e perguntam como o fiz, eu respondo que escrevi e desenhei a mão, página por página. Nos acostumamos de tal modo com a reprodutibilidade técnica e cada vez mais digital, rápida e eficaz que esquecemos o trabalho humano que está por trás das técnicas, e do trabalho humano que não pode ser reproduzido pela técnica de reprodução. Talvez o esquecimento do trabalho seja o maior problema do capitalismo que surge para explorar e destruir o trabalho que, sendo o que fazemos, nos constrói também. O valor abstrato se sobrepõe ao trabalho no capitalismo e, apagando o trabalho, destrói o mundo humano. Estou pensando no trabalho sem romantismo, mas sem repulsa também. O trabalho nos faz humanos, e explorar o trabalho dos outros, me parece diabólico.
Eu faço obras que dão muito trabalho, que levam muitas horas de trabalho manual. Meu assunto é esse: o trabalho que não tem valor ou cujo valor não é jamais um mais-valor porque não lucra, não explora, rompe com a lógica do valor fetichista e nos conduz à magica e à alegria dos brinquedos.
Pele de Porco é um dos meus brinquedos. Um brinquedo de adulto. Terminei de escrevê-lo em 2019. Lembro do meu medo em escrever à mão, mas sobretudo o medo de desenhar. Por mais que eu tenha desenhado ao longo da vida, não havia desenvolvido nenhum trabalho mais sério depois de 2006 quando expus os “Darwinianos” em Porto Alegre, na Galeria Gestual. Até então, o que eu havia feito era desenhar o desenho, ou seja, eu me envolvia com traços e riscos, jamais com a vida ou o mundo ao qual os traços e riscos pudessem se referir. A referencialidade não estava presente, mas apenas a auto-referencialidade dos traços neles mesmos. Eu sempre fui muito abstrata tanto na minha arte, quanto na minha literatura. Talvez eu fosse sobretudo muito “filósofa” no sentido me entender mais com a forma do que com os conteúdos das coisas. Desenhar coisas reais era para mim muito difícil porque eu achava as coisas que existiam sem muito interesse.
Mais tarde, comecei uma cópia de Pele de Porco, mesmo sabendo que essa cópia também é um original. Se o original tem como subtítulo “Livro das Peçonhas”, a cópia se chama “Livro dos Corpos”. O texto é o mesmo, o desenho não. Ao desenhar nunca preciso pensar. O desenho surge numa intuição imediata no trabalho com o lápis, a caneta ou o pincel.
No máximo o que percebo é um desejo, por exemplo de fazer uma mulher flutuando na água, mesmo que não haja mulheres flutuando na água na história escrita.
O texto de Pele de Porco foi criado num jogo: eu tinha que contar a história de duas irmãs, uma que estava internada em um manicômio e esperava a outra para resgatá-la.
Eu não pensei a história antes de escrever. As ilustrações surgiam à medida que eu achava um significante ligado ao nojo, ao veneno. Na cópia, tudo é bem mais abstrato e onírico. A cópia tem sido uma tarefa impossível, mas que obriga a ver o que fiz antes.
Ainda não sei por que me apraz copiar, mas acredito que seja o desejo de ver melhor e, por fim, de acreditar no que vejo.
Últimas vagas!
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Simplesmente...FANTÁSTICO!!!!!