Passei mais de 4 anos de minha vida exilada em Paris. Lá tive um ateliê, fiz residências artísticas e, sobretudo, descobertas.
Ao receber uma bolsa do Artist Protection Fund (2021-2022), eu tive a obrigação de fazer uma exposição. Nunca pensei em me tornar artista visual profissional antes de ter que sair do Brasil por problemas com o fascismo que avançou com toda a força de 2014 até ser interrompido em 2023.
Embora eu tenha me formado em Artes Plásticas na época em que estudava Filosofia (mais precisamente em 1996), eu fui absorvida por uma vida de professora, escritora e intelectual pública que não me dava nenhum tempo livre para as artes visuais. Óbvio que eu me sentia em dívida com isso. Além de tudo, viver longe das artes me deixava triste.
Em 2014, um acidente durante uma banca de doutorado no meio de uma exposição no MAC (Museu de Arte Contemporânea de São Paulo) na qual eu era arguidora, me levou de volta às artes (e ao hospital) com a força do impacto. Uma parede com um trabalho chamado “Campo Minado” caiu sobre mim e eu só não morri porque estava desenhando e com a cabeça baixa. Detalhe, a exposição era parte da defesa do doutorado da artista Elke Coelho e se chamava “Área de Risco”, o que não parece ser mera coincidência em se tratando da irrupção do real que aconteceu ali. A marca da exposição era a delicadeza, mas na dobra do tempo, ela virou uma inóspita violência. Era todo o “unheimlich” de Freud que se mostrava disruptivo e literalmente impactante.
Era uma semana de tensões pessoais e coletivas e a impressão que tenho é que o simbólico ficou tão forte que virou real. Na época, não contei isso publicamente, por medo da reação das pessoas. O ódio já começava a crescer e eu já era alvo desse afeto infeliz, ainda que em proporções bem pequenas por comparação ao que veio depois. De qualquer modo, levei a sério o que me pareceu uma mensagem: desenhar evita a morte ainda que eu quase tenha morrido no meio da arte e atropelada por uma obra de arte. Estou viva por que estou desenhando e, desde aquela época, eu vivo, na verdade, desenhando, pintando e bordando. Além, é claro, de descobrir maneiras novas de escrever.
Há alguns meses, Angela Okano interessou-se por uma das minhas obras. Trata-se de Cristovão Colombo, que foi exposta em Paris em 2022. A exposição “Terradorada” trazia cerca de 30 obras em dimensões variadas, e essa obra foi a última feita para a exposição e, talvez por isso, esteja no pico – ou na dobra de uma banda de Moebius - de amadurecimento dos gestos com que trabalhei ao longo dos anos. Com minha arte, eu acredito que eu esteja em uma operação gestual no tempo histórico, deixando obras nascerem no devir de gestos e intensidades que me tomam. Tenho gostado da noção de intensidade e de acontecimento para pensar no que faço, mas sobretudo, tenho pensado que o cruzamento das minhas “linguagens” (literária, teórica e visual) gera uma “anagramatologia”.
De fato, todos os trabalhos dessa mostra tinham uma relação com um projeto antigo sobre Colonização, mas eu sabia que não poderia dizer tudo o que queria nos textos. Eu comecei a pintar e a cor de ouro veio com toda força em todas as obras. Depois o vermelho, o preto e o branco. Quem conhece os textos de Cristovão Colombo sabe que ele tratava o ouro como Deus. O ouro que era apenas uma lataria bonita para os povos ameríndios, tinha para Colombo e o capitalismo que ele ajudava a nascer, uma dimensão mística e se confundia com Deus.
Nesse Cristóvão Colombo sob véus, é a impossibilidade de ver o outro o que chega à memória. Velado em todos nós que nascemos nesse continente de imigrantes, escravizados, abandonados, enjeitados, aproveitadores e todo tipo de gente emocional e materialmente perdida, Colombo é um morto, um ancestral de todos nós, a quem não desejamos nos identificar. Carregamos Colombo nas costas. Ele é o nosso recalcado. Creio que esse Colombo que se esconde sob véus corresponde ao âmago de alguma coisa a enfrentar. Ocupante do nosso íntimo, Colombo é uma ferida para a qual temos que aprender a olhar sem deixar que ela nos devore. E, por mais “bonita” que a obra possa ser, fato é que ela é para quem tem coragem de olhar no fundo e conectar-se com a própria dor.
Dessa exposição resultaram pinturas que vão do figurativo ao abstrato. Não posso dizer que elas “ilustrem” problemas da colonização, embora eu ache que elas são reações alegóricas ao assunto da colonização das Américas. Quem leu meu livro “Complexo de Vira-Lata – Análise da Humilhação Brasileira” (Civilização Brasileira, 2021) sabe do que estou falando.
Gratidão a Angela Okano pela coragem no olhar. Olhar sem medo e enfrentar as nossas dores é parte essencial de todo caminho de vida.