Uma psicanalista e um paciente fascista
Peça "Um fascista no divã" com Giovana Echeverria estreia em São Paulo, nesta quinta (2). Os ingressos são gratuitos
“Eu sou um homem de ação. Posso não saber, mas faço. Ignoro, mas faço. Se as pessoas parassem de pensar tanto e trabalhassem, a economia cresceria. Para que pensar?”. Essa é a pergunta lançada pelo político ao chegar ao consultório de uma psicanalista. Em cena, ela propõe um diálogo que exige autorreflexão e subjetividade; mas isso se mostra impossível, pois rapidamente entendemos a personalidade autoritária do paciente, com posicionamento de extrema direita.
A peça Um fascista no divã se dá nesse cenário hostil. Foi escrita por Marcia Tiburi e Rubens Casara entre 2016 e 2017, antevendo os desafios que o Brasil enfrentaria nos anos seguintes, e lançada em 2021. A escritora e também filósofa foi alvo de ataques e ameaças de morte diversas vezes, e após ser perseguida politicamente, deixou o Brasil depois das eleições de 2018.
“Na época em que a peça foi escrita, as pessoas tinham medo de falar em fascismo. Tinham medo do diagnóstico. Tinham medo que pudesse ser real. A peça é premonitória. Mas infelizmente não foi encenado na época devido ao pavor mágico de que ela se realizasse. Na época, quem teve a coragem de ler publicamente foram Zélia Duncan e Paulo Betty, com direção de Beatriz Azevedo no teatro da Mídia Ninja. Foi uma ação clandestina incrível contra o horror que chegava e que pouca gente aceitava ver”, relembra Marcia Tiburi.
A atriz Giovana Echeverria, que interpreta a psicanalista, idealizou trazer para a cena o texto que coloca lado a lado o duelo dessas linhas de pensamento e se uniu a André Capuano, que criou o jogo cênico e dirige o espetáculo. A estreia acontece dia 2 de março de 2023 e segue em cartaz até dia 25, de quinta a sábado, na SP Escola de Teatro, na Praça Roosevelt, em São Paulo, com ingressos gratuitos.
O texto reflete e questiona a ascensão do fascismo no Brasil e o público exerce um papel fundamental, já que o personagem do fascista será representado por um coro de não atores, formado por diferentes pessoas a cada sessão do espetáculo.
“Nós buscamos uma forma de mostrar a complexidade que nos atravessou quando passamos a imaginar a relação entre uma psicanalista, que não é fascista, e um paciente fascista. Tentamos lidar cenicamente com as questões suscitadas em nós pelo texto da Márcia Tiburi. Um fascista só não faz terror e sempre haverá uma máquina fascista operando, enquanto o capitalismo correr solto. Por isso criamos na peça um coro guiado remotamente para assumir o personagem do fascista. A Giovana, que faz a psicanalista, vai precisar lidar com o modo de esse coro agir, com a circunstância de cada dia”, revela o diretor.
O cenário da peça inicialmente é um consultório, mas ele vai se modificando ao longo das cenas: se transforma em uma sala de jantar, em um programa de televisão ou em um acampamento. Quem faz essa mudança de cenário também é o coro do dia. “Por causa do modo como será guiado, haverá um desajuste teatral na movimentação do coro, uma falta de acabamento do gesto. Essa falta de acabamento também é proposital, porque não entendemos de fato o corpo fascista contemporâneo. Ao mesmo tempo que seus movimentos são extremamente eficazes, apoiados por uma máquina, a aparência é de falta de habilidade, como as marchas que vimos na frente dos quartéis e as inúmeras cenas bizarras que eles despejaram na nossa cara nos últimos anos”, diz Capuano.
Para Giovana, essa forma de encenação reforça a proporção que o delírio em massa tomou, facilita a experiência que o jogo de linguagem propõe de desnaturalizar os clichês absurdos ditos pelo fascista com frases misóginas, racistas, homofóbicas, sem qualquer constrangimento. “É muito importante entender e visualizar que por mais inacabado e ridículo que possa parecer, o comportamento autoritário jamais pode ser descredibilizado e a indiferença nutre o crescente do absurdo", diz a atriz.
Uma das frases da peça é do filósofo Max Horkheimer que diz: “Quem não quer falar de capitalismo deveria também se calar sobre o fascismo”.