Vira-lata caramelo
Buscando uma imagem que servisse de emblema para esse assunto que toca na pele de cada brasileiro, calhou de eu desenhar um vira-lata caramelo
Complexo de Vira-Lata 1, 2021. Acrílica sobre papel, 50 cm X 70 cm
Há tempos venho tentando reunir os campos de experiência cognitiva e ética, estética e política, que me conduzem nessa existência. Na verdade, se trata de uma experiência com a linguagem que eu tento elaborar até onde meus limites alcançam.
Passei a vida sendo professora de filosofia, o que ainda sou e pretendo ser até o fim dessa mesma vida. Me tornei professora trançando os fios do acaso, do desejo e do desvio de rumo que se anunciou logo cedo, pois antes de aprender a filosofar, eu era uma criança e uma adolescente que desenhava e pintava. Foi aos 13 anos que descobri a filosofia à qual dedicaria a minha vida toda, mas para isso não dava muito tempo para ser artista, o que era o meu destino natural.
Me tornei professora e escritora de trabalhos acadêmicos, dissertações e teses, artigos de revista e jornais, e até mesmo de crônicas e roteiros de cinema. Dediquei-me à escritura do romance. É que muito cedo me apaixonei pela escrita e tive vontade de escrever do meu jeito, sobre as coisas que me tocavam.
Os meus ensaios filosóficos foram amadurecendo e encontrando cada vez mais a experiência com a vida real.
A história é longa e resumi-la seria trair os acontecimentos.
Agora, queria apenas dizer que passei anos pesquisando, lendo e escrevendo e que livros foram aparecendo como fruto de reflexões específicas. Foi assim que, no meio de um longo percurso de pesquisa sobre o colonialismo surgiu um livro que veio a se chamar “Complexo de Vira-lata – análise da humilhação brasileira” (Record 2021). Quando finalizei o livro eu estava envolvida num grande projeto com artes visuais que se chamou “TERRADORADA”. Buscando uma imagem que servisse de emblema para esse assunto que toca na pele de cada brasileiro, calhou de eu desenhar um vira-lata caramelo, um animal bem brasileiro e famoso por sua inteligência. O vira-lata caramelo já uma raça.
O vira-lata caramelo é uma imagem conceitual que traduz o “complexo de vira-lata”, expressão usada desde o famoso texto de Nelson Rodrigues publicado em 1958 para falar do nosso mais estrutural “design” subjetivo, aspecto que eu elaboro no livro.
Sobre a imagem, posso dizer que a recepção por parte das pessoas me soa sempre curiosa. Alguns o associam ao cachorro que Goya pintou em torno de 1820, o que, a meu ver, se deve mais às cores do que a qualquer outra coisa. Na verdade, Goya pintou a cabeça de um cão que desponta no horizonte. O meu cão está inteiro, numa posição de descanso, não perguntamos de onde vem e para onde vai. Por estar de costas, faz pensar que olha com curiosidade para quem ficou para trás. Não sabemos se é um último olhar de quem vai embora, ou se é o olhar ressentido de alguém que se sente abandonado ou traído. Alguns viram nesse cão, uma cadela. Eu me pergunto o que haveria de feminino nesse olhar, mas o enigma não se dissolve.
Lembro de ter usado uma fotografia para pintá-lo e de o ter pintado duas vezes. Depois apareceram outros filhotes dessa figura retratada e eu continuo me perguntando em que rua vivem e se acaso, como na crônica de Nelson Rodrigues, continuam se deixando tratar à pontapés.
Quem teria coragem de espancar esse pobre animalzinho que nos olha perguntando onde estamos?
A resposta a essa pergunta é o enigma de uma vida e justifica uma obra.
O Complexo de Vira Lata 1, 2021 (50 x 70 cm). Impressão FineArt com tinta mineral. Papel Hahnemuhle Matt Fibre 200g. Acompanha certificado de autenticidade assinado pela artista. Tiragem limitada de 40 cópias!